Marcos Ferreira de Andrade*
Na Semana Santa de 1924, Oswald de Andrade (1890-1954), acompanhado do poeta franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961) e de vários modernistas paulistas, desembarcou em Minas Gerais e, junto com os modernistas mineiros, percorreu várias cidades e regiões do estado. Em São João del-Rei, o grupo passou por algumas fazendas da família Junqueira no sul de Minas. No ano seguinte, Oswald publicou o livro de poemas Pau Brasil, impresso em Paris. Dividido em partes, o livro retrata aspectos da história do Brasil, e, dos quinze poemas que compõem a parte “Poemas da colonização”, oito se referem ao passado escravista e ressaltam tanto a violência do sistema como a resistência e a rebeldia escrava. Merece destaque o poema “Levante”. Não vamos analisar aqui o poema do ponto de vista literário, mas observar que o modernista registrou aspectos que remetem à Revolta de Carrancas ao fazer referência à memória oral e à exposição pública das cabeças dos escravos insurgentes.
levante
Contam que houve uma porção de enforcados
E as caveiras espetadas nos postes
Da fazenda desabitada
Uivam de noite
No vento do mato
Se uma obra não pode ser reduzida à história familiar de seu criador, tampouco se pode desvinculá-la dessa história. Nesse sentido, o poema em questão ganha densidade analítica se considerarmos as ligações estreitas dos antepassados paternos de Oswald de Andrade, os Nogueira de Andrade, naturais de Baependi (mg), com a família Junqueira, em especial, com a história da Revolta de Carrancas. São fortes os indícios de que o escritor trouxe para o mundo da arte parte da tragédia que marcou profundamente a memória coletiva da região, especialmente da família senhorial e de seus descendentes. Os fragmentos dessa memória compartilhada circularam e atravessaram o século xix. Foram parar na literatura modernista de meados da década de 1920, atravessaram todo o século xx e continuam presentes no século xxi, na memória coletiva tanto dos descendentes da família Junqueira como na de alguns moradores da antiga região de Carrancas, que compreende também os atuais municípios de Cruzília, São Tomé das Letras e Luminárias, como será demonstrado a seguir.
Na infância, Oswald de Andrade costumava passar as férias na residência de seus avós paternos, localizada na cidade de Caxambu. No seu único livro de memórias, destacou que a família de ascendência paterna “prosperou com grande escravaria negra, sendo que [seu] avô veio […] a se arruinar e deixar o latifúndio”, provavelmente antes da Abolição. Como se trata de um livro de memórias e confissões, o modernista não se atém muito às datas. Mas em outra passagem, ao fazer referência ao irmão mais novo, que fora enterrado junto com os avós paternos no jazigo da família em Caxambu, registrou que as “tias trouxeram a escravaria que restava. E foi do aluguel de escravos que a família se alimentou e manteve por algum tempo”. Muito provavelmente o escritor se referia à memória familiar, ao que deve ter ouvido do pai e das próprias tias, que foram morar em São Paulo, pois o modernista havia nascido dois anos após a Abolição. Em outra passagem menciona as “entrecortadas viagens a Minas”, depois que foi matriculado no Colégio São Bento: “Íamos a Lambari para o Grande Hotel Melo e a Caxambu, onde morava meu avô paterno ainda vivo e uma penca de tias idosas e solteiras”. Portanto, quando criança Oswald de Andrade ainda teve oportunidade de conviver com o avô paterno e a extensa parentela.
Pesquisas das listas nominativas de habitantes da década de 1830 mostram que seus ascendentes faziam parte da elite escravista sul-mineira e eram parentes muito próximos da família Junqueira. Seu avô paterno, Hipólito José de Andrade, era filho de Maria Rita de Andrade e José Gonçalves Penha. Por sua vez, sua bisavó paterna era irmã de Inácia Constança de Andrade, que foi casada com Gabriel Francisco Junqueira, o deputado, futuro barão de Alfenas e proprietário da Fazenda Campo Alegre. Ela teve ainda outro irmão que se casou na família Junqueira. Tomás José de Andrade desposou duas filhas de José Francisco Junqueira: em 1824, casou-se com Antônia Francisca, que morreu jovem devido a complicações durante o parto; em 1825, com Francisca. Tomás e Francisca estão entre as primeiras famílias que ocuparam a região de Poços de Caldas, no sul de Minas.
Na primeira metade do século xix, tanto os Junqueira como os Andrade possuíam vastas propriedades e escravarias no sul de Minas. A Fazenda Bela Cruz, no ano de 1833, possuía mais de cinquenta cativos. Nas listas nominativas de 1839, a Fazenda Campo Alegre contava com mais de cem escravos. O bisavô paterno de Oswald, José Gonçalves Penha, morava próximo da família Junqueira e de duas fazendas importantes da família, a Favacho e a Traituba. Em 1840, contava com 56 anos de idade, era viúvo e residia com alguns filhos, incluindo o avô do escritor, no distrito de São José do Favacho, Baependi, com 47 escravos.
Muito provavelmente, a memória da Revolta de Carrancas permaneceu e circulou na família de Hipólito José de Andrade e foi assim que o seu neto, Oswald, dela tomou conhecimento. Também é preciso destacar que uma das fazendas de seus aparentados Junqueira mereceu dele um registro poético bucólico, o poema “Traituba”, terceiro da parte “Roteiro das Minas”, da obra Pau Brasil.
E como podemos relacionar o referido poema com a memória oral? Há alguns anos, venho desenvolvendo uma investigação acerca da memória do cativeiro nas regiões de Carrancas, Cruzília e São Tomé das Letras que já resultou em mais de duas dezenas de entrevistas, que farão parte do acervo do Laboratório de Imagem e Som, da Universidade Federal de São João del-Rei. Desse conjunto de entrevistas escolhi alguns excertos para o presente texto. É intrigante como alguns guardam semelhanças com o poema “Levante”, de Oswald de Andrade.
(*) Trecho do posfácio a Caramurus negros: a revolta dos escravos de Carrancas — Minas Gerais (1833).