Arthur Nestrovski
Filipson — originalmente Philippson — foi a primeira colônia oficial judaica no Brasil. Vindas da Bessarábia (hoje uma região da Moldávia, entre a Romênia e a Ucrânia), as primeiras 37 famílias de camponeses judeus aportaram no planalto central do Rio Grande do Sul em 1904. Eram 267 pessoas, que integravam um programa de colonização fundado em fins do século xix pelo barão alemão Moritz von Hirsch (1831-96).
Magnata das linhas férreas, Hirsch criou esse projeto de repatriação para ajudar judeus do Leste da Europa, perseguidos em pogroms que aconteciam com regularidade no Império Russo. Depois de sua morte, o programa ficou a cargo da Jewish Colonization Association, cujo presidente era o banqueiro e rabino belga Franz Philippson (1852-1929), patrono da colônia que ganharia seu nome.
Cada família tinha direito a uma casa simples, dois cavalos, duas cabeças de gado e instrumentos para arar uma gleba de alguns hectares. Tudo isso era um adiantamento, a ser devolvido em parcelas ao longo de uma década e meia. O acolhimento aos colonos constituía a contrapartida de um acordo de isenção fiscal firmado entre o governador positivista Borges de Medeiros e a Compagnie Générale des Chemins de Fer Secondaires, de Franz Philippson, responsável pela construção de linhas férreas naquela região, próxima a Santa Maria.
As condições era precárias; a terra se revelou improdutiva; e as intempéries, doenças e ameaças veladas ou atos concretos de violência tornavam a vida ainda mais difícil. Mesmo assim, a colônia existiu por quase vinte anos, tempo bastante para que uma nova geração de jovens judeus brasileiros fosse aos poucos se mudando para as cidades, levando consigo os parentes. Nascida em Filipson, em 1906, Frida Alexandr viveu essa história praticamente do início ao fim. Décadas mais tarde, já sexagenária, registraria essas “Memórias de uma menina na primeira colônia judaica no Rio Grande do Sul (1904-1920)”.
Como diz Regina Zilberman, num ótimo posfácio — de uma só vez comentário ao livro, reflexão sobre o antissemitismo e história sucinta da imigração judaica no Brasil —, a palavra memórias define bem o gênero da coleção de 56 pequenas crônicas, sucedendo-se em ordem cronológica, sem muito rigor. Cada texto reconta um caso, vivido pela menina, ou pela jovem Frida, naquele ambiente de pobreza, trabalho e monotonia: “pasmaceira dos dias sempre iguais e das noites intermináveis” (p. 75), “crianças mendigando afetos” (p. 113). A escola — primeira escola judaica no país — era praticamente o único contraponto às provações cotidianas; mas, com frequência, fechava as portas por semanas ou meses. Uma ou outra viagem à casa de conterrâneos e parentes, a cada tantos anos, ganhava então dimensões de aventura, em cidades com luz elétrica, telefones de manivela e teatros de opereta.
Com tudo isso, a existência evocada nessas lembranças não se restringe a sofrimento e melancolia. Até pelo contrário, não apenas pelos inúmeros retratos da paisagem natural e pelas fantasias e desejos íntimos da narradora, por inocentes ou simples que fossem; mas também e especialmente pelas vinhetas de mulheres, homens, crianças e até de animais, que se fazem presentes de novo, aos nossos olhos. “Sacrilegamente”, escreve ela, “procuro arrancar as criaturas de suas tumbas, fazê-las reviver com todos os seus sofrimentos. Moldo-as, pouco a pouco, com os fragmentos que me saem da memória. […] na medida do possível, insuflo-lhes um sopro de vida” (p. 203-4).
O efeito é real e tocante, na lembrança de quem lê; mas guarda um paradoxo. Se o livro não tem maior ambição formal, satisfeito com a simples sequência de pequenos relatos e anedotas, por outro lado jamais baixa a guarda da retórica, mantendo o registro “alto” e chegando a parnasiano justamente onde seria menos esperado, nos diálogos. “Mais uma coisa vou dizer-te — acrescentou mamãe —, as criaturas mais incompreendidas e injustiçadas não são como parecem as mais inditosas…” (p. 115). Alguém imagina que uma camponesa da Bessarábia, chegada há poucos anos, pudesse falar assim? Aliás, alguém jamais falou assim? “Quebrem a cabeça todos vós!”, grita um velho camponês (p. 138) noutra cena. Etc. etc. A linguagem não poderia ser mais artificial. Talvez por isso mesmo, seja fácil desprezar essa elaborada máscara de palavras, imaginando a realidade das cenas que o livro evoca com a força da verdade, se não da verossimilhança.
Prova disso é o efeito de uma simples frase como esta: “Encontraram na rua Isaac Russowsky […]”, ou esta: “[…] o boteco dos irmãos Russowsky, instalado na beira dessa estrada” — o efeito sobre o bisneto de Isaac, que ele não conheceu, mas encontra agora, ao preparar esta resenha.
Merece destaque a narrativa da nuvem de gafanhotos que assola a colônia a certa altura, com efeitos terríveis. É uma praga bíblica que perde completamente a condição de metáfora: devasta a lavoura, acaba com as frutas, provoca doenças e ainda deixa uma bomba-relógio na terra, em forma de larvas. O que já era ruim pode sempre ficar pior.
O resto da história, o tanto que deve ter se passado com Frida Schweidson até se tornar Alexandr, e muito depois a escritora desse livro, não faz parte da narrativa. Mas bem se pode imaginar, no modelo das vidas de tantos descendentes de Filipson, uma, duas, três gerações adiante. A própria Frida alude a isso, quando explica seu intento ao “ressuscitar” os habitantes da colônia, “para conhecimento das novas gerações, mais cultas, mais prósperas, mais felizes, deles separadas apenas por algumas décadas, devendo-lhes, contudo, o progresso alcançado e as possibilidades que ora usufruem”.
Publicado em 1967, seis anos antes da morte da autora, Filipson é um marco da literatura judaica brasileira. Nem exatamente historiográfico — confiando inteiramente na lembrança —, nem consistentemente literário — sem desconfiar dos fatos e de si mesma —, ele traça um retrato único da mais antiga colônia judaica brasileira, nas improváveis paragens do interior gaúcho.
Arthur Nestrovski é autor de Tudo tem a ver: literatura e música (Todavia) e Outras notas musicais (Publifolha), entre outros livros. Escreveu também dez livros para crianças, entre eles Histórias de avô e avó (Companhia das Letrinhas), que reconta casos de seus antepassados, imigrantes judeus da Bessarábia.
Imagem: vestindo bombachas, Leizer Steinbruch, colono judeu, e seu amigo Nico Correa, não judeu, dividem um chimarrão (Filipson, 1922). Departamento de Documentação e Memória do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall