Trecho

Nhô Quim: da alegoria para as narrativas ilustradas

Nhô Quim com Angelo Agostini

Aline dell’Orto e Marcelo Balaban

Os dois autores de As aventuras de Nhô Quim, Angelo Agostini e Cân­dido Aragonez de Faria, integraram um amplo movimento de emancipação artística. Agostini, apesar de ter estudado arte em Paris, nunca participou das altas esferas artísticas fluminenses. A trajetória profissional de Faria passa por um curso privado de litografia, e não pelos cavaletes da Acade­mia Imperial de Belas Artes, o que faz dele um puro fruto da imprensa. Ambos fazem parte de um grupo de artistas que dei­xam de lado o encantamento com a Academia Imperial — com suas exposições, medalhas, cargos de ensino na instituição, apadrinhamentos, círculos de sociabilidade e colaborações vindas de amigos da alta sociedade fluminense. Artistas como eles reivindicam uma nova identidade: jornalística, artesã e empreendedora. Os desenhistas deixam de ser artistas que trabalham na imprensa para serem artistas porque trabalham na imprensa. Em não poucos casos, aliás, as exposições da Academia Imperial de Belas Artes foram tema das revistas ilustradas, que não perdiam a oportunidade de fazer sátira com tais eventos.

Os dois desenhistas, cada um a seu modo, fizeram do jornalismo ilustrado o seu local por definição. Atuaram tanto como artífices desse tipo de periodismo como fizeram dele um espaço de atuação política e um meio de conquistar a pró­pria autonomia financeira. Italiano de 26 anos, Agostini já tinha certo renome na imprensa quando começou a publicar o Nhô Quim, em janeiro de 1869. Começou nas lides do jor­nalismo ilustrado na capital da província de São Paulo, onde desenhou para O Diabo Coxo (1864-65) e O Cabrião (1866-67). Na capital do Império, pôs seu lápis a serviço do Arlequim (1867-68) e logo em seguida assumiu a parte artística da Vida Fluminense, herdeira direta do Arlequim. Na mesma época, Agostini se estabelecia como pintor e retratista independente em um ateliê no mesmo endereço da revista, na rua do Ouvi­dor, número 52, 1.º andar.

Seu trabalho nesses e em outros títulos posteriores lhe rendeu uma celebridade duradoura, chegando a ser conside­rado o pai da caricatura brasileira. Esse título se deveu, em grande medida, ao seu engajamento político. Foi defensor da República, anticlerical assumido e, sobretudo, abolicionista. Todas essas causas aparecem nos seus desenhos. Mas se o seu empenho político é incontestável, a realidade que o rodeia é bastante mais complexa. Abolicionista assumido, não deixa­va de expressar opiniões mais do que preconceituosas sobre homens e mulheres negros, escravizados, livres e libertos. A obra de Agostini ensina, de um modo quase didático, que racismo e abolicionismo muitas vezes caminhavam juntos e de mãos dadas. Nos anos 1860, o movimento abolicionista ainda não tinha a força que adquiriria mais tarde, e a revista era grande entusiasta da performance do Império na Guerra do Paraguai.

Em 1870, ele começa a colaborar com um semanário muito mais mordaz e que marcaria a história da imprensa ilustrada fluminense: O Mosquito. Coincidência ou não, essa folha foi fundada por Cândido Aragonez de Faria, o sucessor de Agostini na criação da história de Nhô Quim — o artista italiano inter­rompeu o romance ilustrado em janeiro de 1870, e Faria o reto­mou somente em janeiro de 1872, na própria Vida Fluminense.

O artista sergipano tinha vinte anos de idade quando começou a desenhar o Nhô Quim. Sua vida foi conturbada pelo falecimento precoce dos pais, mas ele encontrou uma profissão depois de ter estudado xilogravura no Imperial Ins­tituto Artístico, propriedade do caricaturista Henrique Fleiuss. Antes de iniciar sua colaboração em A Vida Fluminense, em 1871, Faria já havia desenhado para três revistas diferentes (O Almanak da Semana Illustrada, A Pacotilha e O Pandokeu), portanto tinha certa experiência e algum renome, apesar da pouca idade.

Há uma clara desproporção entre a quantidade e a quali­dade de informações disponíveis sobre cada um desses autores. Ela é expressão direta do destaque alcançado por eles em seu tempo, o que acabou refletindo nas pesquisas acadêmicas. Há três livros inteiramente dedicados à vida e à obra de Agostini, ao passo que Faria segue na espera de um pesquisador que lhe dedique seu trabalho. Este livro, mesmo que timidamente, pretende ser também uma contribuição, ainda que modesta, ao estudo desse artista brasileiro.

Cada um à sua maneira, os dois artistas possibilitaram que o periodismo ilustrado, livre das amarras da arte oficial, se tornasse um terreno de inovação e experimentação. As aven­turas de Nhô Quim são parte importante desse longo processo. […]

Se Angelo Agostini está inserido no movimento interna­cional de constituição de um gênero novo, Cândido Aragonez de Faria prossegue com o projeto e inova em outros planos. Quando retoma a narrativa em 1872, depois de Agostini ter deixado A Vida Fluminense em 1870 e interrompido sem nenhu­ma explicação a publicação do romance, Faria mantém traço semelhante ao de seu predecessor, mas busca no repertório caricatural outras técnicas e recursos humorísticos, além de alterar a diagramação da página, com o uso de calhas e a delimi­tação das legendas. O formato não está, portanto, fixo; o cará­ter experimental permanece. Por meio de estudos fisionômi­cos e do uso de silhuetas, Faria explora de forma criativa as possibilidades técnicas do traço. A imbricação dinâmica entre a narrativa e as novidades gráficas propostas por A Vida Flumi­nense produzem uma eficiência maior na crítica ambivalente à classe senhorial e à nova classe urbana. O riso alterna seu alvo no decorrer da narrativa: ora rimos do aparvalhado Quim, ora da pretensão e desonestidade dos citadinos, ambivalência que confere dinamismo a uma narrativa recheada de imprevistos, uma verdadeira aventura.

(*) Este texto é um trecho do posfácio a As aventuras de Nhô Quim, ou impressões de uma viagem à Corte: romance ilustrado.

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