Resenha

Fofoca, intriga e maledicência na corte paulista

Bia Abramo

Roupa suja é um daqueles livros que podem ser lidos de diversas maneiras. A quase cem anos de sua primeira edição, de 1923, o volume de Moacyr Piza se constitui, claro, como obra de referência para historiadores e cientistas políticos, uma vez que trata de personagens públicos atuantes no cenário político do estado de São Paulo e do Brasil. Ao mesmo tempo, o livro também pode ser lido como uma crônica de costumes de uma certa época, na qual as habilidades do autor em carregar nas tintas do humor e da sátira produzem páginas demolidoras sobre a elite então no poder.

Apresentado por seu autor Moacyr Piza como uma “polêmica alegre, onde se faz o panegírico de alguns homens honrados da política republicana”, às primeiras linhas do prefácio o próprio Piza demole a ideia do texto elogioso que é a característica de um panegírico: “A política é, no geral, uma farsa; e o comentário de uma farsa não pode ser feito, naturalmente, com palavras sisudas. Fui, não obstante, o mais sério que pude; o que, com facilidade, em alguns passos se notará, pelo constrangimento do humor, que, devendo ser bom, atentas as faces gaiatas do assunto (eu me ocupo, frequentemente, do sr. Washington Luís), de quando em quando mal se revela, supurando em sátira….

O que move Piza a escrever o panfleto é um incidente, caracterizado pelo historiador Boris Fausto no posfácio, de “um fato que à primeira vista nos parece miúdo, a ponto de ter sido sepultado pela História, que, armada de seu poder de seleção, ora conserva ora sepulta fatos”. Nas eleições municipais de 1922 em Capivari, interior de São Paulo, diante da possibilidade de o Partido Democrático vencer o Partido Republicano Paulista, forças policiais (sob o comando do governo do estado, dominado pelo prp) invadiram o local de votação, retiraram os mesários e intimidaram os eleitores (é preciso lembrar que o voto não era secreto). Assim, o prp evitou a derrota que parecia ser certa. Depois do incidente, o jornalista e político Amadeu Amaral escreveu uma série de artigos em O Estado de S. Paulo, denunciando a violência e a fraude nas eleições.

Piza então decide entrar no embate entre o amigo Amadeu Amaral, presidente do Partido Democrático de Capivari, e os políticos que circulavam em torno de Washington Luís, então presidente do estado de São Paulo e um dos principais nomes do prp (seria ainda senador e presidente do Brasil, deposto por Getúlio Vargas na Revolução de 1930). Ainda que participasse da política apenas como observador, Piza revela-se um crítico ferocíssimo das práticas que eram corriqueiras na vida política da então ainda jovem República brasileira — e não se furta a dissecar com impiedade as características pessoais e certos comportamentos íntimos.

O que se segue são páginas febris que combinam a verve argumentativa com cenas que beiram o burlesco. A gozação, a pilhéria, as alfinetadas humoradas que caracterizaram a produção literária do autor desde os bancos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco entram em verdadeiro estado de paroxismo na descrição de uma comemoração do dia da Proclamação da República:

O Menotti del Picchia, trêfego inflamado, o pince-nez chispante, olha o parque, ardente de lamparinas de azeite, e fala nas Mil e uma noites a umas meninas pálidas. O sr. Rocha Azevedo, mais erudito, por saber latim, pensa em Trimalcião…

“Eu não penso em nada. No deslumbramento que me aturde, sinto-me tão vazio, como se encerrasse na cabeça as cabeças de trinta deputados! […] Mas as vozes perdem-se, abafadas pelas ondas sonoras que a orquestra, no salão próximo, expande, na execução batucada d’ ‘O passo do jocotó’. Terpsícore domina, eletriza os bailarinos. Dança o sr. Luís Fonseca. Dança o sr. Casimiro da Rocha. Dança o sr. Rodolfo Miranda, esforçando-se penosamente para adaptar à cadência repinicada do maxixe o passo obsoleto da mazurca. Dança a Comissão Diretora. Dança o presidente, com delícia. E, vendo o presidente dançar delicioso, engorgita, às pressas, o sr. Rocha Azevedo, o seu 25.o croquette, limpa os dedos nas abas da casaca do sr. Alarico Silveira depois de palitar os dentes com a unha do fura-bolos, sai também aos pulos, o lenço na cintura da dama, que, contra todas as praxes da elegância, desde a corte de Carlos Magno até a de Washington i, em Piratininga, segura com a mão esquerda…”

Dos muitos personagens que Piza ridiculariza sem omitir nomes e sobrenomes — e os pequenos perfis também assinados por Boris Fausto vêm a calhar para o leitor não-especialista em história dos anos 1920 —, os principais e mais constante alvos são Washington Luís e Júlio Prestes, que seria seu sucessor no governo de São Paulo. Com Júlio Prestes, a quem atribui ter sido chamado de “alma de esgoto”, Piza resvala na deselegância, fazendo insinuações sobre uma suposta homossexualidade.

Com Washington Luís, à parte as ressalvas morais e políticas, também aparecem pistas de que haveria uma pendenga de outra ordem. O político era conhecido por gostar da companhia de moças alegres, eufemismo para mulheres que viviam na prostituição de luxo, e estaria recebendo em eventos públicos e festas uma mulher que seria ex-amante de Moacyr Piza. Segundo Boris Fausto, “tudo faz crer que se tratava de Nenê Romano”. A essa altura, o caso de Piza e Nenê Romano estava encerrado, mas Piza nunca teria se conformado com o afastamento. No mesmo ano da publicação do panfleto, Piza tentou uma última aproximação que acabaria em tragédia, com o homicídio de Nenê Romano, seguido do suicídio do escritor.

Ainda que no formato de um panfleto satírico (e às vezes francamente maledicente), Roupa suja também desvela um mundo em transição no qual as moralidades públicas e privadas das elites passavam pelo rolo compressor da modernidade e das novidades da República. E ler esse pequeno livro hoje, além de nos contar do passado, pode servir para lembrar que há sempre uma maneira de dizer que o rei da ocasião está nu.

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