Diários|Resenha

Nos diários de André Rebouças, vida e obra se completam

Fabio Silvestre Cardoso*

André Rebouças não é um ilustre desconhecido. O sobrenome do engenheiro é parte inseparável da topografia do Rio de Janeiro, onde um importante túnel da cidade o homenageia, assim como acontece em São Paulo, onde dá nome a uma avenida importante na capital paulista. Em que pese tudo isso, nos últimos anos, os leitores brasileiros têm redescoberto esse personagem graças à sucessão de livros, publicados pela Chão Editora, que ajudam a compreender uma das mentes mais brilhantes de sua geração. Um homem metódico e disciplinado, mas que tinha espaço para o sensível e sofisticado; um professional das exatas, porém que encantava os de perto e os de longe com sua argumentação consistente em defesa de seus ideais; uma personalidade, enfim, que viveu o seu tempo de modo intenso, conforme se aprende a partir da leitura de O engenheiro abolicionista, 2: no Hotel dos Estrangeiros.

Neste segundo volume dos diários de Rebouças (e o terceiro livro publicado pela Chão a partir da pena do engenheiro), o que se lê vai além do mero registro pormenorizado da rotina do abolicionista brasileiro. Novamente sob organização da historiadora Hebe Mattos, o público tem acesso a um retrato narrado nas minúcias da escalada da luta contra a escravidão; acompanha como as disputas políticas vão crescendo no período; e descobre que o detalhamento obsessivo das suas atividades não apenas serviu para que Rebouças pudesse dar conta do seu cotidiano, mas também são úteis para que o leitor compreenda como o engenheiro se movimentava onde havia espaço.

Já no subtítulo do livro é possível encontrar a dimensão desta nova seleção de escritos: diário, artigos e cartas, 1883-1885. Em outras palavras, o leitor agora tem acesso a um repertório mais abrangente do trabalho de André Rebouças. Desse modo, se nos volumes anteriores o acesso era a esse bastidor — a correspondência e as anotações do diário —, agora, o conjunto oferece uma perspectiva mais ampla da atuação do engenheiro como abolicionista: junto à sua rotina silenciosa, registro de próprio punho de suas atividades, sua colaboração para a imprensa facilita a compreensão da complexidade daquele momento.

No entanto, a razão de ser da publicação não se esgota com essa premissa. É interessante recorrer à explicação da historiadora Hebe Mattos:

Rebouças acompanha toda a movimentação política ligada à subida ao poder do Ministério Dantas, aliado dos abolicionistas, até sua queda e a total inversão dos significados políticos da proposta de lei de libertação dos sexagenários por ele encaminhada. Para a leitura deste livro é desejável, mas não mandatório, ter lido o primeiro volume de O engenheiro abolicionista. Os registros dos diários de Rebouças no Letts Diary, pioneira agenda comercial impressa na Inglaterra, são secos e econômicos, e se tornam ainda mais lacônicos na adversidade. É preciso entender as derrotas em curso para apreciar a leitura. E essas derrotas ocorriam na euforia das expectativas do período anterior.

Desse modo, os diários de Rebouças ganham em significado sobretudo porque, à medida que a leitura avança, o público conhece como as expectativas políticas vão sendo, pouco a pouco, frustradas. Ocorre que, mesmo aqui, há uma diferença. No lugar do desespero da confissão, nota-se o elogio ao método. Dito de outro modo, como que em uma prece, o engenheiro sempre começa as entradas do diário registrando as condições de temperatura, e em meio às anotações de compromissos públicos, reuniões com amigos e apontamentos das aulas é que aparecem os sinais do desencanto.

O fragmento a seguir é exemplar nesse sentido:

2h — Remetendo ao Charles Glanvill, secretário da Companhia Minas Central, a carta escrita ontem com vários documentos sobre essa companhia.
3h — Com o amigo Joaquim Serra que dá-me a grata notícia da libertação de Goiás em 7 de setembro em compensação da catástrofe liberal de ontem.
4h — De volta ao Hotel dos Estrangeiros.
7h — Em casa do ministro Dantas entregando-lhe o diploma do Centro Abolicionista da Escola Politécnica.

Ao contrário do que se costuma imaginar, o fato de André Rebouças ser abolicionista não diminuía seu compromisso com a engenharia — e com as relações de negócio que ele mantinha. Com tanta agenda, ele encaixava as relações com os amigos, jamais abandonando a causa pela libertação dos escravizados e as conexões políticas que eram exigidas sobretudo nos momentos mais graves (aqui, o destaque para o trecho: “em compensação da catástrofe liberal de ontem”). À sua maneira, Rebouças enfrentava os dissabores da política, mas não perdia o prumo: o retorno ao Hotel dos Estrangeiros, quase sempre no mesmo horário (por volta das quatro da tarde), parece funcionar como um momento em que o engenheiro se retira para encontrar o seu próprio centro de gravidade, o que o deixaria pronto para outras atividades em seguida.

Outro aspecto que chama a atenção no texto tem a ver com a galeria de personagens que aparece ao longo do diário. Além de Joaquim Nabuco, o leitor acompanha as relações com José do Patrocínio, Joaquim Serra e Gusmão Lobo. Esses personagens ajudam a entender como a vida social não estava apartada de sua intensa atuação profissional e de sua militância política. Na verdade, seu êxito no trabalho como engenheiro e como abolicionista também era fruto dessas conexões, que ele cultivava com afeto e disciplina.

No posfácio, Hebe Mattos ressalta a importância dessas relações, comentando que os vínculos familiares (“preocupava-se, sobretudo, com o futuro dos sobrinhos André e Carolina, filhos do irmão Antônio”). Além disso, a historiadora explora os escritos de André Rebouças, colocando em perspectiva como os registros são capazes de revelar traços da personalidade do engenheiro. Mattos comenta, assim, que o engenheiro era “apaixonado pelos astros e todos os tipos de sincronismos que pudessem ser medidos de forma matemática, à maneira de certo pitagorismo em voga do século xix”. A historiadora menciona, ainda, “a possível homossexualidade do engenheiro”, assunto que costuma aparecer quando se discute sua biografia. Ao comentar a resposta da psicanalista Ana Maria Rebouças, sobrinha-neta de Rebouças (“sempre dizia que não era essa história que ficara na família”), Hebe Mattos escreve: “A memória tem sempre razão, o desafio do historiador é descobrir que razão é essa”.

A historiadora explica, ainda, por que decidiu encerrar a publicação com um registro forte de Rebouças, cujo trecho, aliás, vale a pena reproduzir:

O vento de ne tem trazido para as ruas de Petrópolis folhas carbonizadas das florestas circunvizinhas, queimadas pela barbaria dos exploradores dos míseros escravizados. Não há como duvidar que o incinerado de agosto e setembro é devido a esses canibais.

Com este O engenheiro abolicionista, 2: no Hotel dos Estrangeiros, o leitor tem em mãos a oportunidade de acompanhar André Rebouças como um personagem íntegro em tempo integral. O engenheiro e o ativista político não estão separados. E ainda que as derrotas tivessem aparecido ao longo de sua jornada, sua obra, sabemos hoje, permanece de pé.

(*) Fabio Silvestre Cardoso é jornalista, doutor em América Latina pela Universidade de São Paulo e escritor. É autor do livro Capanema (Record, 2019) e produtor do podcast Rio Bravo.

Foto: Marc Ferrez, Hotel dos Estrangeiros, c. 1875, com bonde puxado a burros na frente e pessoas na janela (detalhe). Acervo Instituto Moreira Salles

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