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Palmares e os desafios da reflexão histórica

Silvia Hunold Lara

O que faz um texto, escrito há décadas ou há séculos, ser um documento histórico? A resposta é simples: essa transformação depende de uma pergunta feita por um historiador que, ao mesmo tempo, perscrute o passado e faça sentido para seus contemporâneos.

Explico melhor.

Escrever é um ato de comunicação essencialmente humano, que segue certos objetivos e serve para registrar de forma mais perene informações consideradas importantes: uma lista de coisas, um acontecimento, uma vontade, uma história. O resultado material desse ato pode ser logo descartado ou guardado com cuidado. Pode também ser esquecido, perder-se. E ser achado, tempos depois, ganhando novos sentidos. Tudo depende do valor atribuído a esse registro e às informações que ele contém, ao ser produzido ou bem depois disso.

Como todos os vestígios deixados pelas ações humanas, os textos podem trazer informações e suscitar emoções e pensamentos que vão bem além dos motivos que deram origem a eles. As frases podem mudar de sentido conforme o leitor: o amante lê uma carta de sua amada de modo bem diverso de seu bisneto ou de alguém que nunca o conheceu. Mais que isso, a leitura pode até desconsiderar a intenção inicial do escritor. O papel e a tinta de uma carta do século xvii, assim como a folha impressa de um jornal do século xx, para além de seus propósitos e dos assuntos que tratam, podem dizer muito sobre o modo de vida das pessoas e sobre as relações entre elas, em épocas e sociedades bem diferentes das nossas.

Tantas possibilidades abertas por um texto, no entanto, não fazem dele um documento histórico. Mais que recordar eventos distantes no tempo e usar os textos como guias para essas lembranças, o historiador visita e revisita o passado para compreender as ações humanas ao longo do tempo. Por meio dessa compreensão, ele discute questões importantes para homens e mulheres do seu próprio mundo. Trata-se de um ofício especializado no diálogo entre o passado e o presente. A principal ferramenta do historiador não é a curiosidade, e sim sua capacidade de fazer perguntas que interessem a seus contemporâneos e de buscar respostas nas experiências humanas do passado que ajudem a refletir sobre os caminhos do futuro. Do futuro que já ocorreu e do nosso futuro.

Por essa razão, um texto pode “documentar” muitas coisas ao mesmo tempo. Tudo depende das perguntas que lhe são feitas na penumbra silenciosa dos arquivos e das bibliotecas.

Em seus livros, a Chão Editora publica textos de natureza variada: folhetos satíricos, crônicas, relatos de viajantes, memórias e romances, que se prestam a muitas leituras. Esses textos sempre vêm em primeiro lugar, de modo a colocar o leitor em contato direto com o que foi escrito, abrindo espaço para o exercício da reflexão histórica. Os comentários e as informações que seguem ajudam a situar os contextos em que foram produzidos e os principais significados que tiveram ao longo do tempo.

Um bom exemplo é Guerra contra Palmares, organizado por Phablo Roberto Marchis Fachin e por mim. O livro oferece a transcrição de duas versões de um texto produzido entre fevereiro e julho de 1678, pelo padre Antônio da Silva, vigário da matriz de Pernambuco. Escrito para enaltecer o governador dom Pedro de Almeida, ele conta como os mocambos se formaram e dá detalhes de uma grande expedição que atacou os Palmares entre setembro de 1677 e janeiro de 1678. Tal conteúdo rapidamente transformou essa narrativa em uma das principais fontes para a história do mais importante movimento de resistência à escravidão no Brasil.

Embora muito citado, o texto propriamente dito era pouco conhecido. Depois da transcrição, no posfácio, Phablo e eu contamos a história dos dois manuscritos, de seu autor e do modo como foram lidos desde que um deles apareceu impresso, pela primeira vez, em 1859. Essas informações permitem que os interessados na história dos Palmares façam uma leitura mais cuidadosa do texto, levando em consideração os filtros que moldaram a narrativa. O livro traz ainda catorze anexos que oferecem relatos alternativos sobre os acontecimentos. Tudo isso abre novas perspectivas para a compreensão do que foi posto no papel pelo padre Silva em 1678.

Mesmo cercada por tantos aparatos e merecedora de uma edição cuidadosa, a “Relação da ruína dos Palmares” não é, por si só, um documento histórico. Esse texto, em suas duas versões manuscritas, pode “documentar”, por exemplo, um modo de elogiar os governantes ou uma forma de escrever na segunda metade do século xvii, os conhecimentos linguísticos e as referências eruditas de um padre letrado do Recife ou as condições da comunicação política no período.

Evidentemente, ele documenta também parte da história dos Palmares, especialmente o modo como os mocambos eram vistos pelas autoridades coloniais. Por isso, sua forma de abordar os acontecimentos e as informações que oferece nunca podem ser tomados como únicos e verdadeiros. Precisam ser cotejados com outros textos, outros documentos. Não para estabelecer uma narrativa singular e pretensamente mais “exata” dos eventos — mas para poder apreender os múltiplos significados que os mocambos tiveram para diferentes pessoas. Afinal, a perspectiva de quem neles viveu diverge daquela dos soldados que lutaram contra eles, e ambas da forma como eram avaliados pelas autoridades coloniais, em Pernambuco ou em Portugal.

Guerra contra Palmares apresenta alguns enfoques alternativos, que indicam ter havido outros “heróis” que foram ignorados pelo padre Antônio da Silva. Sua pena era seletiva — assim como a de todos os que narram eventos que testemunharam ou consideraram importantes. Um dos muitos desafios da análise histórica é não deixar que uma só maneira de apreender os fatos organize a narrativa e se torne explicação histórica. Por isso, muito raramente as perguntas formuladas pelo historiador podem ser respondidas por um único documento.

Aos interessados na história dos Palmares, recomento uma visita ao site Documenta Palmares. Ali estão disponíveis fontes históricas, obras bibliográficas, materiais audiovisuais e mapas sobre os Palmares, produzidos do século xvii até o xx. Esse instrumento de pesquisa certamente contribuirá para ampliar as possibilidades de conhecer a história dos mocambos em suas múltiplas dimensões, complementando o exercício iniciado com a leitura do Guerra contra Palmares — cujos manuscritos estarão em breve disponíveis no site da Chão Editora.

O contato com essa polifonia de vozes permite discutir alguns temas importantes: como pessoas situadas em lugares sociais diversos viveram os eventos que protagonizaram? a partir de que elementos atribuíram significados a eles? como esses significados marcaram a memória desses eventos? São perguntas que podem ser aplicadas a muitos acontecimentos do passado, mas que, formuladas em tempo presente, também ajudam a compreender o mundo em que vivemos e suas contradições. E a pensar no impacto que nossas ações — grandes ou pequenas — podem ter.

Feitas em relação à história dos Palmares, tais perguntas abrem novas possibilidades de interpretação — e de conhecimento — das ações que levaram tantos homens e mulheres a lutar contra a escravidão a que estavam submetidos havia tantos séculos. Ou das intenções dos que lutaram contra eles, para colocá-los novamente sob o domínio de seus antigos senhores. Irreconciliáveis, essas versões da história não podem ser simplesmente justapostas ou consideradas equivalentes. Uma está diretamente registrada no texto do padre Antônio da Silva, combina com suas motivações e a natureza de seu relato. Mas e a outra? Pode um texto produzido com objetivos opostos documentar o ponto de vista dos habitantes dos Palmares?

Esta é, sem dúvida, uma pergunta crucial, pois coloca em primeiro plano a necessidade de integrar na história a perspectiva dos que não deixaram registros escritos — e de desenvolver técnicas para que essa tarefa possa ser realizada. Transformar textos como o do padre Silva em documentos que permitam compreender o pensamento e as ações dos que estavam nos mocambos é um dos principais desafios da reflexão histórica sobre os Palmares.

Afinal, precisamos de documentos históricos que nos ajudem a pensar o que os homens e as mulheres que viveram nos Palmares podem ensinar aos que, hoje, como cidadãos, queremos enfrentar a desigualdade e a exploração. Você já pensou nisso?

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