Resenha

Para entender a história de mulheres negras na diáspora

cortejo da rainha negra

Taina Silva Santos

Sacerdotisas voduns e rainhas do rosário: mulheres africanas e inquisição em Minas Gerais (século xviii) é uma coletânea de fontes importantes para entendermos as experiências de mulheres africanas que vivenciaram a diáspora no Brasil, um processo impulsionado pelo tráfico de escravizados no mundo atlântico. A obra também conta com um texto dos organizadores que, além de nos apresentar o contexto de produção da documentação histórica, trata das lógicas de organização social, política e religiosa nos arredores do Daomé (atual Benim) e nos mostra como mulheres africanas reformularam esses sentidos na América Portuguesa ao longo do século xviii. Em diálogo com pesquisas que buscam destacar o protagonismo da população negra na sociedade brasileira, o livro apresenta novas possibilidades de análise para o estudo da história das mulheres negras e dialoga de um jeito bonito com os caminhos que têm sido explorados pela historiografia brasileira há, pelo menos, quarenta anos e que marcaram uma virada importante no que se refere aos estudos sobre a população negra.

O ativismo de mulheres negras, especialmente aquele que tomou força nas décadas de 1970 e 1980, foi o principal responsável por colocar as experiências femininas e negras na pauta historiográfica. Desde então, o estudo dessas sujeitas tem ampliado o campo da história, diversificado o conjunto de temas aos quais a historiografia se dedica e apresentado novos recursos teóricos a serem mobilizados, mas, sobretudo, novos recursos metodológicos: as fontes para o estudo passado. Atualmente, o conjunto de pesquisas sobre o tema é significativo, ainda que não seja tão extenso. Os estudos resultantes desse movimento revelam questões, processos, experiências individuais e coletivas interessantíssimas em diversos momentos da história.

No período em que viveram Ângela Maria Gomes, Teresa Dias, Maria Teixeira e outras personagens de Sacerdotisas voduns e rainhas do Rosário, as mulheres negras eram minoria demográfica quando comparadas aos homens negros da Colônia, pois o tráfico de escravizados tinha como principal foco a população masculina. Essa conjuntura demográfica perdurou até o século xix. Apesar disso, o protagonismo de mulheres africanas e afrodescendentes teve dimensões impressionantes nessas sociedades, pois foram as mulheres negras que mais conseguiram se alforriar, quando em comparação com o acesso que os homens negros tinham às cartas de liberdade. Como Aldair Rodrigues e Moacir Maia nos mostram, o atendimento espiritual realizado pelas sujeitas do livro foi um meio de complementarem a renda, acumularem dinheiro para comprar a alforria, investirem nas irmandades religiosas das quais faziam parte e colaborarem para que outras pessoas saíssem da condição de escravizadas. Devido, entre outros fatores, à capacidade de circulação e articulação decorrente das formas de trabalho, do papel dessas mulheres em suas comunidades, grupos religiosos e associações, esse fenômeno aconteceu em diversas regiões do Brasil, em especial nas cidades, pois as pretas minas dominavam as práticas de comércio. 

Sacerdotisas voduns e rainhas do Rosário também permite saber mais sobre as posições estratégicas que essas mulheres tinham nas sociedades patriarcais africanas, como o Reino de Daomé, Uidá e Aladá. Elas eram responsáveis, destacam os organizadores, pela iniciação no culto de Dangbé (a cobra) — vodum nobre nas religiões do golfo do Benim — e protagonistas de outros rituais litúrgicos nos espaços domésticos. Sem essas informações, não entenderíamos os sentidos da popularidade, das estratégias e das posições que essas mulheres buscaram ocupar no Brasil. Com isso, o livro mostra a importância de estudos sérios da história da África para a compreensão das dinâmicas da sociedade brasileira.

Além do tema do protagonismo feminino e negro, o livro também é uma contribuição importante para pensarmos a história da cultura afro-religiosa fora do eixo Bahia—Rio de Janeiro. Minas Gerais foi um centro econômico importante no século xviii, tendo abrigado, aproximadamente, 96 mil homens e mulheres em condição de escravizados no ano de 1735. Essa população, deslocada do continente africano para trabalhar nas roças, nos setores de serviços das cidades e até mesmo na extração do ouro, produziu e reinventou as práticas culturais que deram origem ao que entendemos como cultura afro-brasileira.

Ainda que a maior parte das fontes compiladas em Sacerdotisas voduns e rainhas do Rosário não tenha sido produzida pelas mulheres às quais elas se referem, os documentos transcritos no livro são um exemplo e uma prova do que se pode encontrar nos arquivos para produzir histórias de mulheres negras. Processos e testamentos dão pistas importantíssimas sobre as formas de sociabilidade e sobre o imaginário de africanas, afrodescendentes e até dos brancos que circulavam nas roças onde aconteciam os cultos voduns e outras cerimônias ritualísticas.  Em tempos em que a memória aparece como tema de interesse e relevância na opinião pública, cada vez mais deparamos com falas que reiteram argumentos da década de 1960, usados por historiadores, antropólogos e outros profissionais das ciências humanas que não reconheciam os homens e as mulheres negras como sujeitos históricos. Afirmações que, mesmo quando bem-intencionadas, vão na contramão do que vem sendo construído de sério no campo da história, desarticulando e fragilizando a produção intelectual de pessoas negras que têm que se dedicado a questionar as relações de poder na produção do conhecimento.

Sempre existiram fontes para o estudo da população negra, e os documentos transcritos em Sacerdotisas voduns e rainhas do Rosário são uma amostra disso. Assim, talvez o problema que perdura em torno da questão diga mais sobre o racismo dos intelectuais do que sobre outra coisa.

Imagem: Carlos Julião (1740-1811), “Cortejo da Rainha Negra na festa de Reis” (desenho 46 — detalhe). Aquarela. Acervo Fundação Biblioteca Nacional — Brasil

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