Cartas|Resenha

O sol africano de André Rebouças

Keila Grinberg

“Necessito de floresta virgem e de sol africano.” É assim que André Rebouças se despede de Antônio Júlio Machado, responsável pelo projeto de construção da estrada de ferro de Luanda a Ambaca, em Angola. André escrevia de Marselha, de onde tentava conseguir emprego para ir trabalhar na África. Era fevereiro de 1892, e d. Pedro ii falecera alguns meses antes, em Paris. Rebouças tinha saído do Brasil com a deposição da Monarquia, em novembro de 1889, e acompanhara a família imperial em seu exílio em Portugal e na França. A morte do imperador, por quem Rebouças devotava verdadeira veneração, havia sido um golpe duro, e ele nem cogitava retornar ao Brasil.

Na carta seguinte, endereçada ao seu grande amigo Taunay, explica seus planos: “Nada posso fazer de melhor do que ir à Africa: escrever um livro tolstoico — Em torno d’África — e esperar por lá que termine a expiação aguda dos seculares pecados do Brasil escravocrata e monopolizador de terras em latifúndios indefinidos”. Em fins de março, André embarca no navio Malange, de onde segue para Moçambique. Não retornaria ao Brasil. Desgostoso com o país, estava decidido a dar o resto de sua vida “ao continente de seus pré-avós africanos”.

Com organização de Hebe Mattos, Cartas da África: registro de correspondência, 1891-1893, de André Rebouças, é uma seleção de cartas, quase todas inéditas, escritas entre outubro de 1891 e julho de 1893. Conhecido por seus diários, André também guardava em cadernos cópias das cartas que enviava — de onde saiu o material publicado agora. Nem bem lançado, o livro, primeiro volume de uma série de cinco devotada aos escritos de André Rebouças, já estava entre os melhores lançamentos de 2022. Cartas da África não só é um dos lançamentos mais importantes de 2022, mas é livro para se tornar referência imediata para especialistas e interessados no tema.

Em primeiro lugar, por trazer novidades fundamentais para o estudo da vida e do pensamento de André Rebouças, um dos maiores intelectuais de seu tempo. Resultado de décadas de pesquisa, as cartas do exílio eram praticamente desconhecidas até mesmo dos estudiosos. Foram organizadas de forma a demonstrar o cotidiano, os percalços e, principalmente, as visões de André Rebouças. Ao lê-las, conhecemos um homem com saudade dos amigos, preocupadíssimo com os rumos do Brasil, atento ao que se passava nas repúblicas vizinhas da Argentina e do Chile e, principalmente, à sua volta. Não escaparam de seus olhos episódios de violência em Lourenço Marques, atual Maputo, em Moçambique, e principalmente em Barberton, na África do Sul, que Rebouças relaciona à violência racial e às práticas da escravização.

A escolha de iniciar o mergulho na correspondência de André antes de sua viagem à África foi particularmente feliz. As cartas do período da morte de d. Pedro ii mostram que a decisão de deixar a França e não retornar ao Brasil está relacionada à ausência de perspectivas que o falecimento do monarca significava para ele. Afinal, como escreve em agosto de 1892 a seu amigo Rangel da Costa, “o Brasil sem d. Pedro ii […] parece-me o vácuo, a venialidade”. Rebouças abominava o regime republicano como havia sido implantado no Brasil. Na mesma carta, continua: “E essa pobre gente? Ainda não compreendendo em que foram conquistados por militares ambiciosos e por politicantes e agiotas sem o mínimo exemplo? Se o Brasil pudesse ser república, desde muito o presidente seria Pedro ii e o secretário André Rebouças. Sair da senzala da escravidão e embarafundar pelo quartel da soldadesca sanguinária e bárbara, sem remorsos de fuzilar e bombardear, não é fazer república, é baixar ao último degrau da barbárie”. Cartas da África se encerra com a chegada de Rebouças a Funchal, onde viveria até sua morte, em 1898. As cartas desse período serão publicadas no último livro da série.

Tão importante quanto a organização e a divulgação das cartas de exílio é a belíssima leitura que Hebe Mattos faz no posfácio. O André Rebouças que ela apresenta não é o patrono da engenharia brasileira, título pelo qual ele e seu irmão Antônio Pereira Rebouças Filho são mais conhecidos, mas o abolicionista monarquista e sua aguda percepção racial. Mesmo desiludido com o Brasil, Rebouças não deixava de combater os interesses escravocratas onde os percebia, e via a si próprio cada vez mais como africano.

Hebe reflete sobre a trajetória dos Rebouças no contexto da institucionalização do racismo brasileiro e dos “dolorosos processos de branqueamento” que tanto ainda marcam a sociedade brasileira. Se, como Hebe argumenta, o próprio André não foi embranquecido pela memória coletiva posterior, a história de sua família foi comumente celebrada como prova da possibilidade de ascensão social dos negros livres no Império e, depois, como evidência da inexistência de racismo no Brasil. Mas a análise de Hebe mostra justamente o contrário.

Na década de 1890, o que André queria era encontrar a paz no sol africano e na floresta virgem — cuja obrigação de civilizar, aliás, cabia aos europeus, que tanto haviam lucrado com séculos de escravização. Vencido pela melancolia, viveu plenamente sua “dupla consciência”, expressão usada por Paul Gilroy em O Atlântico negro para definir o profundo dilema da modernidade, que, em larga medida, foi enfrentado por Rebouças em toda a sua existência: o do homem universal, crente na ciência e no potencial redentor da civilização ocidental e ao mesmo tempo profundamente consciente de sua negritude e de seu próprio passado africano. Impossível continuar a ver André Rebouças da mesma maneira depois de ler o posfácio de Hebe Mattos.

Devo concluir advertindo que sou mais do que suspeita para escrever sobre Cartas da África. Sou fã de carteirinha das edições da Chão, uma das iniciativas mais instigantes do meio editorial brasileiro e um presente para nós, historiadores. Além disso, estudo a família Rebouças há mais de vinte anos, e embora Hebe generosamente afirme que nós duas dividimos achados e reflexões sobre o tema, a verdade é que sou eu que sigo seus passos. Por isso, se fosse a leitora deste texto, eu desconfiaria e correria à livraria mais próxima para ler Cartas da África por conta própria.

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