Diários

A escrita de si de André Rebouças

Hebe Mattos

Em 9 de fevereiro de 1877, Rebouças registrou em seu diário: “Dia dúbio: chuva à tarde: 24 a 26° centígrados”. Deixou a página em branco para voltar a escrever somente em 1891, na página seguinte:

Cessou o Diário Regular com a entrada para a redação d’O Globo a 3 de março de 1877.
Continua o Resumo Biográfico até 31 de dezembro de 1882.
E depois o
Letts Diary de 1883 a 1889.

A confiar-se na anotação, ele simplesmente deixou de manter um diário regular de fevereiro de 1877 até o final de 1882. Não se pode descartar, porém, a hipótese de uma interrupção menor, com a retomada em algum outro suporte, rejeitado no trabalho de reorganização memorial consolidado durante o autoexílio, a partir de 1891. Há algumas evidências disso, que comento no final deste posfácio.*

De todo modo, a interrupção de 1877 aconteceu, e o corte entre o Rebouças jovem e o maduro seria consolidado no trabalho de memória, iniciado já na década de 1880, com anotações suas nos diários antigos e a elaboração de um Resumo Autobiográfico, que ele menciona várias vezes nos registros de 1883 e 1884. No Museu Imperial encontram-se diversos extratos desse resumo referentes aos anos de 1877-80, relacionados à amizade com o maestro Carlos Gomes e à organização do Festival Carlos Gomes em 1880. Os detalhes ali relatados são indícios da existência de diários para esse período, base para a elaboração do Resumo Autobiográfico, descartados apenas em 1891.

Em 1880, André perdeu o pai, sua principal referência intelectual. No mesmo ano passou no concurso da Escola Politécnica, efetivando-se na cadeira de engenharia civil. Escreveu também seus primeiros artigos abolicionistas na Gazeta da Tarde, então propriedade do jornalista negro Ferreira de Menezes, juntamente com os abolicionistas, também negros, José do Patrocínio e Luiz Gama. Organizou as primeiras conferências abolicionistas e o Festival Carlos Gomes, participou da fundação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão com Joaquim Nabuco e redigiu os estatutos da Associação Central Emancipadora.

No Resumo Autobiográfico dos anos 1877-82, parcialmente publicado por Ana Flora e Ignácio José Veríssimo na edição de 1938 dos diários e cartas, são sobretudo essas ações abolicionistas que merecem destaque. As referências aos negócios aparecem apenas até 1877. Ana Flora e Veríssimo intitulam as anotações entre 1874 e 1877 então publicadas como “o fim do industrial”.

A crise foi profunda, mas absolutamente não marca o fim da presença de Rebouças no mundo dos negócios. O André Rebouças que ressurge nas páginas do Letts Diary em 1883 é ainda o engenheiro e empresário que viveu a crise do final da década de 1870. Para entender o Rebouças de 1883 é preciso, portanto, recuar no tempo.

Ainda no final da década de 1860, o jovem engenheiro, então recém-chegado da Guerra do Paraguai, foi indicado pelo Conselho de Ministros para dirigir as obras das Docas da Alfândega, no Rio de Janeiro. Como gerente-geral do empreendimento, deparou constantemente com limitações orçamentárias e terminou por convencer o chefe do gabinete de ministros, visconde de Itaboraí, a criar uma companhia de capital privado para a conclusão das obras. Seria a primeira empresa privada concessionária de serviço público no Império.

Rebouças foi o responsável por toda a construção do arcabouço legal e econômico para a realização do projeto e, por isso, declinou de participar como acionista da companhia das Docas da Alfândega, que passou a administrar as docas que ele construíra e dirigira como comissionado do Estado imperial.

Aberta a possibilidade de atuação da iniciativa privada em obras de infraestrutura como concessionária do Estado, André participou da formação de diversas sociedades por ações para desenvolver seus muitos projetos, atraindo investidores no Brasil e no exterior.

Ele formulava os projetos de engenharia, montava o arcabouço legal das companhias e tinha contatos no Brasil e no exterior para atrair investidores. Conhecia pessoalmente capitalistas e industriais ingleses e estadunidenses com interesses no Brasil e privava de sua amizade.

Foi, nessa condição, o grande responsável pela modernização do porto do Rio de Janeiro, à frente das obras das Docas da Alfândega e depois das Docas Pedro ii, da qual foi acionista e gerente-geral. Concebeu, paralelamente, a modernização de outros portos brasileiros, como os do Maranhão, do Recife, da Paraíba e, mais tarde, do Rio Grande do Sul. Com o irmão, também engenheiro, projetou o sistema de abastecimento de água para o Rio de Janeiro e construiu companhias por ações para o fornecimento de madeira para a construção civil, com práticas de reflorestamento (a Companhia Florestal Paranaense citada no diário) e para a construção de uma estrada de ferro entre Antonina e Curitiba, no Paraná. Com capitais ingleses, projetou e conseguiu implementar outra estrada de ferro, na Paraíba, concluída durante o período relatado neste diário.

A concorrência entre a companhia das Docas da Alfândega e a das Docas Pedro ii pelo frete do café mudaria totalmente a situação para André. Em 1871 ele foi demitido da gerência das Docas da Alfândega, e a partir de então as críticas ao custo de algumas decisões suas à frente das obras das Docas Pedro ii se tornaram cada vez mais pessoais, a ponto de ele se afastar da gerência-geral da companhia da qual era acionista para fazer uma viagem à Europa e aos Estados Unidos, em 1873. Tentava passar as decisões cotidianas a subordinados para apaziguar os ânimos de seus inimigos. Não foi assim que as coisas transcorreram.

Ao retornar, após alguns meses de viagem, seu irmão Antônio morreu repentinamente de tifo em 1874, em meio a obras de uma ferrovia que dirigia no estado de São Paulo, aos 34 anos, deixando viúva e dois filhos menores.

Ainda sob a dor dessa perda, viu o caminho de ferro que haviam projetado juntos, entre Curitiba e Antonina, ter o seu traçado final modificado para Curitiba—Paranaguá, em função de disputas políticas entre as duas cidades, e ter a concessão final retirada da empresa em que ele e os órfãos do irmão se mantinham como sócios.

Era uma crise ao mesmo tempo econômica e política, numa economia patrimonial, movida por favores pessoais. Na sequência, a Companhia Florestal Paranaense, da qual também era um dos principais acionistas, entrou em crise financeira, com ecos ainda na década de 1880. Finalmente, após muitas idas e vindas de negociações políticas, a gerência não foi renovada, ainda que a companhia continuasse a existir, em fusão com as Docas da Alfândega. Por uma terrível ironia, líderes conservadores a quem admirava, ligados às reformas da Lei do Ventre Livre, como o visconde do Rio Branco, seriam seus algozes empresariais nesse momento difícil. Pedro ii não o socorreria. A mágoa foi profunda e o afastaria da família imperial até as vésperas da Abolição.

A morte do pai em 1880 fecharia o círculo do inferno. Sem os dois Antônios, André ficava solto no ar. Vendeu a casa da família, decidiu morar em hotéis.

[…] Foram anos difíceis, mas combativos. Apesar da amizade com Nabuco e Taunay, muitos de seus companheiros mais próximos naqueles anos eram republicanos, como José Carlos Rodrigues, José do Patrocínio, Ferreira de Menezes ou Luiz Gama. Guardou, no Resumo Autobiográfico de 1880-82, apenas o bom combate pela causa da Abolição. Ao concluir o posfácio voltarei a argumentar que existiram diários para esses anos, ainda que André não os tenha preservado.

A falência foi dramática, mas ele se reergueu. Do exílio, em 1891, entre silêncios e revelações, André decidiu nos deixar ler novamente seus diários a partir de 1.º de janeiro de 1883.

Não foi, porém, o único ator na reorganização para a posteridade de sua escrita de si.

Os escritos de André atravessaram o Atlântico depois de sua morte em Funchal. Quem primeiro os recebeu e guardou? Os diários de 1883, 1884, 1885, 1887 e 1888 foram doados na década de 1940, provavelmente pela sobrinha Carolina, filha do irmão Antônio, ao arquivo do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (ihgb). A família guardou consigo o diário do ano de 1886, doando-o apenas décadas depois.

André não foi o único gestor de sua memória, não há dúvida, mas ouso dizer que foi o principal. É ele quem decide se dar a ler de novo a partir de 1883. Foi ele quem provavelmente destruiu a maioria de suas notas de viagem ou o Diário Especial que menciona em 20 de março de 1883. Teve tempo de sobra para isso.

André Rebouças se escreveu para a posteridade, não tenho dúvida. Ocupou-se de sua memória como um artesão dedicado desde pelo menos a década de 1880, com direito a rever tudo durante os longos anos de autoexílio.

Ler a escrita de si de alguém que escreveu cada dia de sua vida me colocou alguns dilemas éticos. Teria eu direito de roteirizar, quase como romance, aquilo que Rebouças escreveu aparentemente para si mesmo? Estou, porém, apaziguada com a questão.

A escrita de si que agora lemos é a que ele quis que lêssemos. E, se podemos discutir ou imaginar algumas questões pessoais não explicitamente tratadas no texto, é porque ele quis nos deixar essa janela de imaginação.

(*) Este texto é um trecho do posfácio a O engenheiro abolicionista: 1. Entre o Atlântico e a Mantiqueira — Diários, 1883-1884.

Deixe um comentário