Diários

Vovô era eugenista

José Renato Kehl

A família Kehl e a família Penna se uniram quando meu avô Renato se casou com minha avó Eunice. Vovô era médico e minha avó, do lar, como praticamente todas as mulheres de classe média de seu tempo. Meu avô Renato Kehl tinha toc (transtorno obsessivo-compulsivo), em uma época que nem sabíamos que isso era um transtorno. Nós chamávamos de “mania de limpeza”, simplesmente, mas agora a medicina moderna diz que isso é um problema de saúde mental. Bom, sempre achei meu avô meio maluco, excêntrico para dizer o mínimo. Quantas pessoas, amigos ou conhecidos que o visitavam, eu não vi constrangidas, de mão estendida esperando cumprimentá-lo, enquanto vovô, de braços cruzados, dizia:

“Não vou lhe dar a mão porque você está vindo da rua, e sabe-se lá onde pôs a mão antes de chegar aqui. Pode até ter posto esse dedo no nariz!”

Nada mais natural que ele escolhesse seguir uma carreira de sanitarista, pois tinha verdadeiro horror a germes e outros agentes infecciosos. Acho que ele sempre foi assim, mas a morte por septicemia de seu filho mais velho, Victor Luis, aos catorze anos, por conta de uma furunculose mal curada, certamente contribuiu para agravar esse quadro. Ele e minha avó Eunice nunca superaram realmente o trágico incidente, e também meu pai, que era o irmão caçula, carregou um trauma para o resto de sua vida. Para meu avô, a higiene era a parte mais útil da medicina, e podia ser definida desta forma: “Na arte de conservar a saúde — e se é verdade, como diz a sabedoria antiga, que a saúde é o primeiro dos bens —, a higiene deve ser a primeira das artes”.

Sua obsessão com limpeza e arrumação chegava às raias do absurdo. Uma das irmãs de minha avó, Ernestina, que todos na família chamavam de China (ou tia China para nós, crianças), morava no Rio de Janeiro e se divertia azucrinando meu avô quando vinha a São Paulo e ficava hospedada na casa dele.

“Renato”, ela dizia, “essa sua casa é um verdadeiro mausoléu! Nem parece que mora alguém aqui! Um pouco de bagunça não faz mal a ninguém.”

E lá ia a tia China tirando as coisas do lugar, jogando uma revista em cima do sofá, mexendo nos objetos que meu avô mantinha meticulosamente arrumados em cima de cada mesa ou prateleira da casa. Havia um utensílio, em particular, que eu achava fascinante e que ficava em cima de um aparador na sala, que ela fazia questão de tirar do lugar. Era uma espécie de tesoura de prata, que em vez de lâminas tinha uma caixinha que se abria e fechava quando manipulávamos o cabo. Servia para apagar velas, imaginem só. O doutor Renato colocava a tal tesoura com o cabo voltado para a borda do aparador e a caixinha apontando para a parede, como se ela estivesse ali para ser usada a qualquer instante, quando alguém porventura precisasse apagar uma vela. Mas a tia China, com seu jeito brincalhão, cada vez que passava por ali virava a peça cento e oitenta graus, deixando o cabo voltado para a parede. Quando vovô passava pelo aparador e via o apagador de velas virado para a parede, reclamava com minha avó:

“Eunice, quem foi que mexeu aqui?! Foi China?!”

“Não sei, Renato, nem tinha reparado…”, dizia minha avó, com uma paciência infinita, enquanto tia China soltava risadinhas maliciosas.

“Que importância tem isso, Renato? Não tem uma vela para apagar nesta casa!”

Mas um dia meu avô perdeu a paciência e começou a esbravejar e a xingar todo mundo por causa da bagunça que tia China fazia, justo quando meu pai estava presente. Vovô Renato ficou apoplético, o rosto vermelho, enquanto gritava com China. Então, teve um ataque cardíaco e caiu prostrado em uma poltrona. Minha avó e minha tia acharam que era pura encenação, mas meu pai percebeu que ele estava suando frio, pálido como cera, e resolveu carregá-lo para a cama e chamar um médico. Quando estava a caminho do quarto, vovô disse com um fio de voz:

“Sergio, espere um pouco…”

Meu pai se deteve do lado do aparador, e então meu avô, em um derradeiro esforço, ajeitou o apagador de velas que estava voltado para a parede, antes de desmaiar.

Folheto sobre livros de Renato Kehl guardado em um dos cadernos
de diários de Eunice Penna Kehl

Assim era o Renato Kehl, que, além de médico formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, era prolixo e escreveu “mais de trinta livros!”, como gostava de frisar, apontando para a estante da sala que acomodava todas as suas obras, primorosamente encadernadas com lombadas de couro e títulos em letras douradas, meticulosamente organizadas, ao lado de clássicos da literatura e da filosofia mundial. Boa parte de sua obra era dedicada à eugenia, teoria científica furada que estava na moda no início do século xx e foi apoiada pela imensa maioria dos cientistas do mundo todo, principalmente os da Alemanha nazista.

Sim, o meu avô Renato Kehl era um eugenista militante e, por tabela, um simpatizante do nazismo e de Adolf Hitler. Mas eu só fui perceber claramente esse fato décadas depois de sua morte, quando fui me desfazer dos livros dele, que, por uma dessas reviravoltas do destino, vieram parar em minhas mãos. Os livros ficaram com meu pai até ele falecer, em 2000, e depois foram para minha casa, onde permaneceram encaixotados por duas décadas. Então, em uma das minhas muitas mudanças de endereço, vieram para uma estante da minha garagem. Eu precisava de espaço, e comecei a organizar os livros, separando os que achava que ainda tinham algum valor, para tentar vender em algum sebo, daqueles que poderia dar para algum de meus irmãos.

Foi no meio desse processo que o jornalista Theo Huprecht entrou em contato comigo, me perguntando se eu poderia lhe conceder uma entrevista. Como assim, por acaso eu sou famoso? Quem poderia querer me entrevistar, e por que motivo? Theo me explicou que minha irmã, Maria Rita, havia indicado meu nome para dar uma entrevista a respeito de meu avô Renato. Santa coincidência, Batman! Justo quando eu estava arrumando a biblioteca de vovô!

Bem, agora eu teria que olhar com mais cuidado os livros, em particular aqueles sobre eugenia, tanto do meu avô como de outros autores, que faziam parte da biblioteca dele. Para mim, que nasci na metade dos anos 1950, a Segunda Guerra Mundial, o nazismo e o Holocausto sempre foram assuntos teóricos, que estudei no ginásio mas não fizeram parte da minha experiência pessoal. Talvez por isso, e pelo fato de meu avô ser uma pessoa muito fechada e distante, que nunca falava de seu passado, também nunca tive uma conversa com ele sobre nazismo, eugenia ou outro assunto correlato.

Eu realmente não fazia ideia do que iria encontrar quando comecei a examinar os livros de meu avô. Só posso dizer que não estava preparado para isso, porque o que encontrei foi algo realmente chocante!

Dentre os livros de vovô, havia um exemplar do Mein Kampf, ou Minha luta, escrito por Hitler. Estava todo grifado em lápis vermelho, com anotações aqui e acolá. Eu já conhecia os efeitos do discurso nazista, mas nunca tinha me interessado em ler a obra do Führer. Confesso que não imaginava o grau de preconceito, racismo, estupidez e ignorância que existe no texto. Pior ainda, não esperava encontrar as anotações de meu avô, concordando com essas ideias!

Meu mundo caiu. Eu sabia que vovô havia sido diretor da Bayer no Brasil, e que por esse motivo fora convidado a fazer parte de uma comitiva de eugenistas brasileiros que tinha estado na Alemanha pouco antes do início da Segunda Guerra. Sabia também que nessa ocasião ele conheceu pessoalmente o ministro da Saúde do Terceiro Reich, Leonardo Conti, e que trocou um aperto de mão com o próprio Hitler. Mesmo assim, eu não fazia ideia do quanto ele era adepto das ideias nazistas. Que ele era racista, toda a família sabia, e ele deixava isso bem claro. Quando voltávamos das férias de verão no Guarujá, e eu e meus irmãos mostrávamos com orgulho nosso bronzeado, ele dizia:

“Vocês não têm vergonha?! Deviam se orgulhar da cor da sua pele! Vocês são brancos!”

E arregaçava a manga da camisa, mostrando seu braço cor de cera, que não via a luz do sol havia anos.

Na nossa inocência infantil, chamávamos isso de rabugice, de mau humor do vovô, não do que realmente era: racismo. Mas nós, ao contrário, ficávamos felizes de mostrar o bronzeado para os colegas no primeiro dia de aula na escola. Era uma verdadeira competição para ver quem estava mais queimado de sol.

Maria Augusta Chaves, mãe de Eunice, visita o marido,
Belisário Penna, durante sua prisão, em 1924, no quartel do
Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro
(Foto: arquivo da família)

Eu não sabia, naquela época, que vovô era um eugenista de quatro costados, que havia fundado o Comitê Central de Eugenismo do Brasil, junto com Belisário Penna, meu bisavô, pai da vovó Nice (que era como nós, crianças, chamávamos a Eunice). Belisário, no entanto, era muito mais um higienista do que um eugenista propriamente dito, ou seja, estava mais preocupado com as condições de higiene e saúde do povo brasileiro do que com as questões raciais e, na verdade, ele destoava do pensamento racista das elites brasileiras de sua época. Belisário achava que o problema do país residia na falta de educação e na precariedade das condições sanitárias das populações mestiças dos nossos vastos sertões, e não na miscigenação e na “degeneração racial” do povo brasileiro, como pensavam os eugenistas mais radicais liderados por meu avô Renato. Meu bisavô estava mais alinhado com o pensamento de outro eugenista renomado, Roquette-Pinto, que teve grandes embates e discussões com meu avô Renato dentro da própria associação dos eugenistas do Brasil, pois acreditava que o problema do país estava nas políticas públicas, e não na genética.

Belisário percorreu o interior do Brasil fazendo um trabalho de profilaxia e educação sanitária pelas aldeias e povoações mais isoladas e abandonadas, pregando seu “evangelho” higienista, que afirmava que tudo de que o Brasil precisava, para se desenvolver e superar a condição de insalubridade endêmica das populações rurais, se resumia a três itens de saneamento básico: “botina, Necatorina e latrina!”.

As botinas evitariam a penetração dos vermes filariformes, que causavam as verminoses, e a Necatorina (tetracloreto de carbono) era um vermífugo poderoso, que também eliminava infestações de ancilóstomos, ascarídeos, tênias e outros microorganismos. Por fim, as latrinas, com fossas sépticas, naturalmente, evitariam a proliferação dos vermes no ambiente.

Grande Belisário! A história acabou lhe dando razão. Já meu avô Renato era muito mais um intelectual que um homem de campo, e escreveu diversos livros sobre higiene, saúde e eugenia, totalmente alinhados com os pensadores mais radicais da Alemanha nazista e de outros países da Europa e dos Estados Unidos.

Ele nunca me contou muitos detalhes sobre o assunto, nem eu tive interesse em perguntar o que ele pensava sobre cor de pele, raças etc., mas, estudando sua biografia, fiquei sabendo que ele se envolveu em acalorados debates sobre políticas públicas e a agenda eugenista durante sua longa carreira de escritor.

No entanto, depois que ele voltou ao Brasil, acabou se aposentando precocemente em 1939, aos cinquenta anos, pois, por pura vaidade, não aceitou uma proposta de emprego em uma empresa menor que a Bayer, a Fontoura, por julgar que trabalhar ali estaria aquém de sua competência. Assim, dedicou o resto de sua vida a escrever livros e artigos em jornais e revistas sobre eugenia, e a aporrinhar a vida de todos à sua volta.

Pois é, Renato Kehl era um chato, mas nem por isso eu deixava de gostar dele. Quando meu pai conseguiu comprar seu primeiro imóvel, um sobrado na rua Mourato Coelho, em Pinheiros, meu avô veio morar conosco, pois ele não conseguia mais se sustentar com o dinheiro da aposentadoria. Na verdade, quando parou de trabalhar, ainda não existia a Previdência Social nos moldes de hoje. Sendo assim, meu avô, que era um homem previdente, fez uma espécie de plano de aposentadoria privada e comprou títulos da dívida pública do Governo Federal, que na época valiam um bom dinheiro, para poder vendê-los quando preciso e dessa forma conseguir manter seu padrão de vida na velhice.

Pobre vovô. Foi mais um brasileiro que acreditou no governo e se deu mal. Não é preciso dizer que os tais títulos que ele possuía em pouco tempo passaram a valer menos que papel higiênico, e ele teve de vender sua casa e acabou vindo morar com minha avó em uma edícula que havia nos fundos de nossa casa, em Pinheiros.

Quando criança, eu sempre ia visitá-lo à tarde, pois minha avó Nice fazia biscoitos ou pão de minuto, que eu comia de lanche junto com café preto, que eu não tomava em casa porque era muito pequeno. Depois, eu assistia ao ritual diário de meu avô tomando uísque, enquanto ele me falava sobre os maravilhosos tico-ticos e os horríveis pardais (que tinham invadido o Brasil), seu assunto predileto. Sim, porque para um higienista como ele, tomar uísque era uma medida profilática, e não um prazer. Ele esperava pacientemente o relógio da sala bater cinco horas para tomar a sua dose, à razão de um gole por minuto, marcado no relógio, enquanto discorria sobre as qualidades terapêuticas das bebidas alcoólicas, em especial as destiladas, para as funções do sistema circulatório.

Apesar de ter escrito muitos livros sobre eugenia, meu avô, por ter nascido no Brasil, e não na Alemanha de Hitler ou em outro país europeu, não foi um intelectual influente no campo da eugenia mundial. Suas obras ficaram mais conhecidas entre os eugenistas brasileiros, que hoje não passam de uma minoria no campo da medicina e da genética no país, graças a Deus!

Até onde eu saiba, a eugenia no Brasil não chegou a gerar campos de extermínio e experiências com cobaias humanas.

Vovô morreu em casa, aos oitenta e quatro anos, enquanto dormia, e sempre me lembro dele dizendo que, quando morresse, iria para o céu montado em um cacho de bananas. “Mandando bananas para todos que ficarem aqui embaixo!”, dizia, fazendo o tradicional gesto com os braços, que acho que os paulistanos adquiriram dos imigrantes italianos.

1 comentário

  1. No meu romance Noite em Paris que publico no blogue de mesmo nome aproveito muita coisa do leio como inspiração porque acredito que escrever é realmente escrever vidas, umas mais, outras menos parecidas com o vivido na própria realidade. Quem sabe um dia não esteja lá o Dr. Renato Kell com seu eugenismo e mania de limpeza. É ele, realmente um personagem e tanto. Parabéns pelo relato.

Deixe um comentário